Agostinho da Silva: Idealizador do Ceb UFG
Quem foi Agostinho da Silva?
Nascido no Porto, em 1906, Agostinho integrou a onda de intelectuais portugueses refugiados no Brasil no período da ditadura de António de Oliveira Salazar, que controlou o poder de 1932 a 1968. Abrasileirado, ele se reconhecia numa frase ouvida do poeta Manuel Bandeira: “O brasileiro é um português à solta”.
No vaivém de homem de numerosos lares e projetos, Agostinho deu aulas ao futuro primeiro-ministro português Mário Soares, colaborou com o então presidente brasileiro Jânio Quadros e ganhou respeito dos artistas Caetano Veloso, Glauber Rocha, Gilberto Gil e Jorge Mautner.
Durante o exílio brasileiro e depois do retorno a Portugal, em 1969, a personalidade de Agostinho da Silva se cobriu de mal-entendidos. Os inimigos do Estado Novo português o associavam às mesmas fontes do nacionalismo de Salazar, embora o ditador o tomasse por comunista e herege, reputação acentuada pelos ataques de católicos ultraconservadores ao leitor insubmisso do cristianismo e da vida de são Francisco.
Associado a profecias, o professor era um místico e utopista descrente no marxismo e no liberalismo, aninhado numa esquerda aberta a visões imaginosas do destino coletivo.
Em 1943, perseguido pela polícia política, ele seria preso, torturado e enfim lançado à liberdade condicional em Lisboa. Para escapar da repressão, refugiou-se sob outro Estado Novo, o de Getúlio Vargas. Ganhou a pele de pensador lusófono e mergulhou ao longo de 26 anos em instituições culturais e universidades de Santa Catarina, Paraíba, Bahia, Minas, Goiás e Distrito Federal.
Na década de 1950, Agostinho formulou um moderno sebastianismo em tudo estranho ao reacionarismo dos profetas de cais de porto.
Em sua mirada utópica, a diversidade étnica e a potência continental do Brasil recriavam as condições perdidas por Portugal para liderar os povos de língua portuguesa. Na era das descobertas, os ibéricos ampliaram a noção universal de humanidade antes demarcada por gregos e romanos. Dali em diante, para Agostinho, seria a vez de o Brasil civilizar a Europa, a África e a Ásia.
Em 1957, o ensaio “Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa” difundiu sua ideia central: “Que tome o Brasil inteiramente sobre si, como parte de seu destino histórico, a tarefa de, guardando o que Portugal teve de melhor e não pôde plenamente realizar e juntando-lhe todos os outros elementos universais que entraram em sua grande síntese, oferecer ao mundo um modelo de vida em que se entrelaça numa perfeita harmonia os fundamentais impulsos humanos de produzir beleza, de amar os homens e de louvar a Deus: de criar, de servir e de rezar”.
Até a sua morte, Agostinho lapidaria obsessivamente esse pensamento, incorporando a experiência histórica das aldeias portuguesas da Idade Média, de raízes católicas, cujo modelo de organização comunitária desafiaria a um só tempo o capitalismo dos nórdicos protestantes e o sistema planificado soviético.
Daí vem a ironia de Agostinho numa das entrevistas televisivas que o popularizaram na pátria natal, nos anos 1990: “A melhor maneira de ser revolucionário em Portugal é ser um conservador do século 13”.
Apenas um ano separa “Reflexão” de “Um Fernando Pessoa”, antologia de poemas recheada de ensaios sobre o poeta ortônimo e seus heterônimos, com estima especial pelo livro “Mensagem”, de 1934. Agostinho encontrou em Pessoa a revelação de um passado português que não era de natureza “puramente histórica”, reforçando assim a base abstrata do mito sebastianista.
A epígrafe de um dos capítulos foi encontrada numa frase de Pessoa que revela ele próprio, Agostinho: “Sou, de fato, um nacionalista místico, um sebastianista racional”. Eduardo Lourenço reconhecia no amigo uma “espécie de anarquismo profético e radioso, no fundo mais próximo de Rousseau que de qualquer figura clássica da família ‘mística’”.
A união de poesia e história estrutura o pensamento do filósofo sobre o futuro e as tarefas dos povos de língua portuguesa. Dois mitos alimentam o seu grande rio utópico: a Ilha dos Amores do Canto IX de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, e dom Sebastião, o rei desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578. No século 20, não interessava mais o “Encoberto” cristalizado na velha lenda, mas o “Desejado” renascido em “Mensagem”, de Pessoa.
Por sua vez, no poema épico de Camões, a Ilha dos Amores é o lugar do encontro de ninfas e navegadores da saga de Vasco da Gama. Superados os suplícios do caminho marítimo para a Índia, a voz da deusa Vênus os transporta no tempo e no espaço em estrofes assumidas por Agostinho como figuração da necessária abertura mental para as utopias. Há uma terceira ponta nesse ideário. O Quinto Império do padre António Vieira estava em seu horizonte no que podia guardar de semelhança com o mito judaico do “povo eleito”.
Extasiado pelas proezas dos argonautas, Vieira vislumbrara o império português cristão como sucessor dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos. Num texto de 1991, o antropólogo Pedro Agostinho, filho do filósofo, esclareceu as diferenças entre o império de Vieira e aquele outro proposto por seu pai, definindo este como “social, política e religiosamente difuso, sem centros de poder político, e, sobretudo, sem centros de poder religioso e ortodoxo”. No Brasil, o português à solta encontrou um prenúncio desse império de liberdade nas festas do Divino Espírito Santo.
O neossebastianismo de Agostinho esteve atento aos povos africanos violentados pelo colonialismo europeu. No princípio dos anos 1960, sua ação política buscou enredá-los no império sincrético e desmilitarizado da língua portuguesa. Com pioneirismo, ele iniciou missões luso-afro-brasileiras, a mais ousada de todas na Universidade Federal da Bahia, onde criou o Centro de Estudos Afro-Orientais, que alimentou a política externa de Jânio Quadros para a África. Por obra de Agostinho, professores de português foram enviados a universidades de Senegal, Nigéria, Gana, Zaire e Japão.
A experiência baiana precedeu o início da guerra colonial (1961-1974) em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique —uma investida militar ruinosa para a economia portuguesa, corrosiva para a ditadura salazarista e miserável com os africanos. Sem exagero, Agostinho empreendia uma rara conciliação de sebastianismo e política externa. À época, defendia a formação de um bloco independente de países não alinhados aos EUA e à União Soviética.
Algumas doses de uísque depois, Jânio renunciou e veio um refluxo dos projetos na África. O filósofo se reabilitou graças ao antropólogo Darcy Ribeiro, que o atraiu para o corpo docente da UnB (Universidade de Brasília), onde fundaria o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, sua última missão de vulto às vésperas do regresso a Lisboa, cinco anos antes da Revolução dos Cravos.
A Bahia concentrou os impactos culturais duradouros de Agostinho da Silva. Seu fiel interlocutor, o antropólogo Roberto Pinho, pai do organizador da edição crítica, levou suas ideias até os tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil, bem como ao ensaísta Antonio Risério, de uma geração posterior.
Frequentador dos cursos da Escola de Teatro da Bahia, o cineasta Glauber Rocha foi contemporâneo das aulas de Agostinho sobre a cultura grega, mas seu interesse pelo sebastianismo antecede a chegada do filósofo a Salvador, em 1959.
Glauber realizava viagens de pesquisa no interior baiano e se empanturrava de literatura popular. Sem dúvida, pesou mais em seu itinerário a vertente irracionalista do fenômeno messiânico. Anos depois, ele diria a Caetano que “o sebastianismo é o segredo por trás do cinema novo”.
Agostinho da Silva realizou o último esforço de modernizar o sebastianismo e adequá-lo ao mundo pós-colonial. Reeditada, a sua obra ressurge em circunstâncias adversas. A Idade Média, inspiradora de sua miragem socializante, virou licença histórica para qualificar as brutalidades do Brasil.
Em aliança com liberais e religiosos obscurantistas, a extrema direita abala a crença em destinos promissores no Atlântico Sul e dá de ombros para a África. À deriva, a esquerda se distancia do brinquedo mais dadivoso para Agostinho: a imaginação.
Matéria de Claudio Leal in Folha de S.Paulo.